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Castigo de Deus

''O português é uma língua muito difícil. Tanto que calça é uma coisa que se bota, e bota é uma coisa que se calça.'' Barão de Itararé

13/11/2019 08:00 | Atualização: 26/11/2019 18:45

Dad Squarisi

A Terra tinha uma só língua e um só modo de falar. Todos se entendiam. “Que monotonia”, bocejaram as criaturas. “Vamos agitar?” Pensa daqui, palpita dali, eureca! Decidiram construir uma torre que os levasse ao céu. Lá as coisas deveriam ser mais animadas.  

Deus, ao ver a ousadia, irou-se. O castigo veio rápido – a criação de 6.800 línguas. Os pedreiros de Babel não entenderam mais o mestre de obras, que não entendeu mais o engenheiro, que não entendeu mais o arquiteto. O esqueleto ficou ali, inacabado. Babel virou substantivo comum. Significado: confusão de línguas.

Punição

As pessoas se dispersaram. Pior: cada língua recebeu punição à parte. O chinês ficou com os milhares de ideogramas. O inglês, com a escrita diferente da pronúncia. O francês, com a praga dos acentos. O alemão, com as palavras coladas, tão compridas quanto a cobra que tentou Eva no paraíso.

E o português? Ganhou o hífen. Deus pegou um montão de hifens na mão direita, um montão de palavras na esquerda e jogou tudo pro alto. O resultado? Baita confusão. Algumas palavras se ligaram com hífen (contra-ataque), outras não (contraindicação). Outras dobraram letras (contrarregra). Por quê? É o castigo do Altíssimo.


Eis a prova

Na segunda, o governo anunciou medidas para estimular a criação de empregos com carteira assinada. Os grandes beneficiados são os jovens. Viva! Quase um quarto dos brasileiros nessa faixa etária joga no time nem-nem — nem trabalha, nem estuda.

Foi um auê. Jornais, rádios, tevês, sites anunciaram a inciativa. Uiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii! Tropeçaram no castigo de Deus. O responsável pelo tombo foi o nome da novidade. Apareceram três grafias. Uma: Programa Verde e Amarelo. Outra: Programa Verde-Amarelo. Mais uma: Programa Verde Amarelo.

E daí?

Há duas formas corretas:

1. Programa Verde e Amarelo — Assim mesmo, sem hífen. O trio joga no time de pé de moleque, mão de obra, testa de ferro, tomara que caia, dor de cotovelo, mula sem cabeça. Antes da reforma ortográfica, essas palavras se escreviam com tracinho. Mas, como não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe, o elo bateu asas e voou. Adeus!

2. Programa Verde-Amarelo — A duplinha pertence à gangue de arco-íris, beija-flor, guarda-roupa, porta-luvas, para-choque. Etc. e tal. A turminha se escrevia com hífen. A reforma ortográfica respeitou-a. Manteve o tracinho.


Exceção

Paraquedas se escrevia como as irmãs da mesma composição — para-choque, para-raios, para-lama, para-chuva, para-fogo, para-luz. Mas decidiu fazer gracinhas. Na hora da reforma, despencou do céu diante dos acadêmicos. Eles levaram tal susto que se esqueceram do hífen. É o castigo de Deus.

Salvação

Muitos escreveram Programa Verde Amarelo. Bobearam. Na pressa, nem se lembraram da bondade divina. O Senhor puniu, mas mostrou o caminho da salvação — a consulta ao dicionário. No pai de todos nós, está a grafia nota 10. É só abri-lo.

Flexão

Verde é adjetivo. Amarelo também. Adjetivos compostos de adjetivo + adjetivo obedecem cegamente a uma regra. Só o segundo varia: bandeira verde-amarela, bandeiras verde-amarelas, programa verde-amarelo, programas verde-amarelos.

Leitor pergunta 

O ministro da Educação, ao citar problemas do Enem, concluiu dizendo “tiveram muitos outros casos”. Será que ele esqueceu o uso do verbo haver ou nunca aprendeu a lição?
João Moreira Coelho, Brasília

Alguém disse que a língua é um sistema de ciladas. Pensava, com certeza, no haver. O verbo ora é pessoal. Conjuga-se em todas as pessoas (hei, hás, há, havemos, haveis, hão). Ora, impessoal. Só se flexiona na 3ª pessoa do singular. Foi aí que o ministro cochilou. No sono sem fim, trocou o haver pelo ter. Melhor tomar uma ducha fria e dizer com agrados a Camões, Machado, Graciliano: Houve muitos casos.